sábado, 6 de novembro de 2010

Monteiro Lobato - Nota da ABL

A imprensa divulgou esta semana que a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação do MEC aprovou um parecer aconselhando o banimento de uma obra de Monteiro Lobato nas escolas do Distrito Federal.

A noticia parece tão absurda que nem se pode acreditar que seja verdadeira. No mínimo, deve estar descontextualizada. E toda leitura deve ir além do texto, buscando também o contexto. Essa é a boa maneira de ler . Assim é que qualquer obra literária deve ser lida — inclusive a de Monteiro Lobato. Sobretudo nas escolas.

Somos contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística. Consideramos que uma cultura não pode se tecer com as linhas dos melindres e ressentimentos. Isso a empobrece, em vez de enriquecê-la.

Cabe ao professor orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Isso não significa concordar com tudo o que o autor escreveu ou que uma época passada considerava. Pelo contrário, implica fazer uma viagem a esse tempo e tentar compreendê-lo, sem com isso deixar de discordar. Supõe manter a capacidade de dialogar com a obra, distinguindo nela o que não se aprova e o que desperta identificação — características que variam de um leitor para outro, aliás.

Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.

Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.

Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emilia ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.

A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro. Portanto, sugerimos que o plenário se manifeste, apelando ao senhor Ministro da Educação no sentido de que se respeite o direito de todo cidadão a esse legado, e que vete a entrada em vigor dessa recomendação.

Nota da Academia Brasileira de Letras, aprovada pelo presidente Marcos Vinicios Vilaça